A Memória da Família e a Família na Memória
Ao iniciar
um ano letivo, sempre procuro saber sobre o local de origem dos meus alunos e
dos seus pais. Através dessa prática, procuro compreender a formação da
comunidade que circunda a escola para melhor direcionar o trabalho em sala de
aula. Nesses anos de magistério descobri que muitos alunos não têm noção das
suas origens, sendo que o pouco que sabem não vai além do local de nascimento
do pai ou da mãe. Os nomes dos avós ou local de origem destes, quase sempre
desconhecem.
Essa
descontinuidade na história pessoal do indivíduo pode influenciar negativamente
na afirmação de alguns sentimentos, como o desejo de pertencimento que origina
o nacionalismo e de auto-estima, importante elemento na busca pela cidadania. Não
precisamos de muito esforço para perceber que as nossas relações sociais
sofreram profundas alterações nos últimos 50 anos. Considerando as necessidades imperiosas do
imediatismo desvalorizamos o passado. E o vazio criado tem sido preenchido com
informações massificadas.
O
sociólogo francês Maurice Halbwachs afirmava que a memória é um fenômeno
cultural, ou seja, que a nossa memória individual é um ponto de vista da
memória coletiva. Se tudo que é cultural o é por ser transmitido ao longo das
gerações, a “falta de memória” que hoje presenciamos na nossa sociedade é
também um fenômeno cultural. Afirmava ainda, que o que consideramos relevante
lembrar é também uma construção social, subjugando a memória individual à
memória coletiva.
Sendo a memória um fenômeno cultural, a família
possui uma grande influência na sua valorização, mas a dificuldade de
sobrevivência associada a fatores socioculturais alteram as relações familiares
e a sua prática se torna muito difícil. Para piorar a situação, a influência
dos avanços tecnológicos no nosso cotidiano tem contribuído para individualizar
o ambiente familiar. Hoje muitas famílias passam um fim de semana “juntos”,
porém absolutamente separados. Podem dividir o mesmo ambiente, mas não o mesmo
assunto ou interesse. Muitas vezes uma falta de energia, de sinal da TV, ou o
mau funcionamento da internet, se tornam grandes aliados na recuperação do
convívio familiar, condição imprescindível para a conservação da memória da
família.
Pensar a experiência cotidiana e externá-la, promove
o autoconhecimento e a compreensão da história individual. Pais que educam
através das suas experiências, das suas histórias, sejam elas vitórias ou
frustrações, contribuem bastante para o crescimento emocional dos seus filhos, além
de iniciar o processo de compreensão do saber histórico ao se colocarem como
protagonistas da História. O ideal seria que cada ser humano escrevesse as suas
memórias ou que pelo menos se preocupasse em transmiti-las. Não há história que
não mereça ser contada. O processo de massificação da informação e de deslocamento
das prioridades afetivas que têm caracterizado as sociedades de consumo,
diminui cada vez a outrora básica
necessidade de preservação da memória pessoal. Preservar a memória é prepará-la
para enfrentar o desgaste do tempo sobre a tradição.
Outro
sintoma desse distanciamento da memória é a maneira como as gerações recentes
têm tratado os idosos. Na sociedade da informação, ser velho é ser
ultrapassado. Vez ou outra, quando uma escola deseja resgatar a memória recente
de um bairro ou cidade, o idoso é entrevistado, sua memória é registrada e
depois transformada pelos alunos em redação ou desenho e acaba aí. Um dia, o
filósofo iluminista e músico francês, Jean Jacques Rousseau disse: “Na juventude deve-se acumular
o saber. Na velhice fazer uso dele.” Hoje, poucos são os idosos que possuem a
oportunidade de exercitar o seu saber, geralmente por falta de ouvintes. No
frenesi da evolução tecnológica, o apreço pela memória tem esmorecido e a
informação tem sido confundida com conhecimento.
Considerando
o quadro de constante “emergência” em que vivemos, pode parecer utópico e
despropositado nos preocuparmos com a preservação da memória familiar. Somos
compelidos a adotar os valores da maioria, principalmente se a família,
enquanto núcleo primário da construção da identidade, não desempenhar o seu
papel ideológico. O posicionamento de cada um diante de tal realidade,
dependerá justamente das suas experiências de vida, experiências essas que nos
tornam únicos e especiais. E como dizem por aí: “Tudo que é especial merece ser
lembrado!”
Rogério Carvalho
Professor de História - Especialista
em História do Brasil
Artigo publicado no Jornal Público Alvo- abril de 2011.
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